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Um Pedido Oficial

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on July 15, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

 

O que tornava aquela cena ainda mais inesperada era o fato dele não imaginar do que se tratava aquela notificação que estava sendo entregue pelo Oficial de Justiça. Seus cartões estavam em dia, dívidas não existiam, tampouco nenhum deslize financeiro que justificasse aquele procedimento.

– Eu entendo, senhor. Entendo que o senhor não faça idéia do motivo, mas a minha obrigação é apenas entregar o documento pessoalmente. O senhor tem alguma dúvida a respeito do dia, horário e local da audiência?

– Dúvida nenhuma. Terça, dezoito de abril, às quinze horas. Vou estar lá, claro.

E assim, sem fazer idéia do que o aguardava, lá estava Rodrigo diante do juiz togado da quinta vara da família, ansioso por saber o que o levara até ali, divagando entre a possibilidade de um filho que não conhecera; uma herança repentina deixada por um tio distante, ou um grande equívoco que logo seria esclarecido.

Foi nessa intercalação de projeções que surgiu na sala Madalena, ex-namorada, com um olhar bem tranqüilo, uma leve maquiagem que ressaltava o brilho dos olhos e as maçãs do rosto, cuja expressão meio que se artificializava com o sorriso forçado. Um colar dourado, bem em sintonia com aqueles cabelos loiros, deixava-a ainda mais exuberante, especialmente porque combinava com os brincos compridos que balançavam sincronicamente a cada meneio de cabeça. Para surpresa dele, ela ainda usava o pingente com a letra R, o mesmo de todo o tempo em que estiveram juntos, e que também estava presente no dia do rompimento.

– Se é o que você acha, tudo bem. Não vou ficar insistindo nessa idéia.

– É o melhor mesmo, Rodrigo, porque eu não quero me precipitar numa decisão que vai afetar diretamente toda a minha vida.

– Então quer dizer que estando você apaixonada. Apaixonada, não… me amando; estando nós dois juntos há um ano, projetando nossas vidas, casa, sonhos e tudo, isso não seria razão suficiente pra morarmos juntos? Isso não seria suficiente pra “afetar” sua vida?

– Nossa. Como você está sendo maniqueísta.

– Maniqueísta. Engraçado. Eu sempre odiei essa palavra. Mas, se for o caso, eu estou sendo sim. E se maniqueísmo corresponde a querer o que nos faça feliz, eu serei, sempre, o porta-bandeira do Maniqueístas Futebol Clube.

Foi uma separação difícil. Eles realmente se gostavam muito. Porém, quando se é jovem há fatores que ultrapassam e muito o sentido da razão, ainda que eles se apresentem como os mais razoáveis do momento.

Mas o que ainda não era compreensível era o que tudo aquilo ali representava. O que poderia ter havido e provocado aquela audiência, até então rodeada de tanto mistério, silêncio e confidencialidade? A resposta teve início com o questionamento do juiz:

– Senhor Rodrigo, o senhor faz idéia do que o traz aqui?

– Nenhuma idéia, excelência.

– Muito bem. Esta é uma audiência preliminar, gerada a partir de uma ação movida pela senhora Madalena, aqui presente, e que tem um só objetivo: falar com o senhor.

– Como é que é?

– Isso mesmo que o senhor ouviu. Ela quer tão somente falar com o senhor. Ao que parece, nos últimos dias o senhor se negou a manter qualquer tipo de contato ou conversa com a sua ex-namorada. Não atende nem retorna as ligações; não responde e-mails; o senhor sequer tem dado atenção às súplicas da mãe dela em recebê-la em sua casa.

– Bem, excelência, embora isso tudo me pareça bem estranho, eu posso, sim, dar todas essas respostas a ela…

– Não, não senhor. Estamos numa audiência e o senhor tem que se reportar ao juiz, neste caso eu, para que eu repasse os dados à autora da petição.

– Cumpramos a regra, então, não é seu doutor? Pois bem. Nessas três semanas de separação, muitos foram os momentos em que eu tive vontade de manter contato, ligar, correr atrás. Fazer tudo o que meu cansado coração mandava, excelência. Só que, depois de um certo tempo, você descobre que ninguém pode ser mais amado do que uma única pessoa na sua vida.

– E quem seria?

– Nós não podemos amar ninguém mais do que a nós mesmos, excelência. E quando isso ocorre, deixamos de lado o que nos faria feliz e passamos a nos contentar com migalhas. E convenhamos, doutor, ninguém vive de migalhas.

– Mas não era assim que eu agia. Eu não te dava migalhas. Eu só não estava bem certa do que eu queria. – Àquela altura, Madalena chorava. Mas não um choro estridente, que ecoasse em soluços pela sala, e sim um choro cândido e discreto, que redimensionava sua beleza e marejava também os olhos de Rodrigo.

– Senhora Madalena… a senhora não pode se dirigir diretamente ao depoente. Em todo caso, o senhor entendeu a colocação da moça?

– Entendi. Claro. E eu poderia saber, excelência, o que ela pensa agora?

– A senhora pode responder.

– Eu não penso em outra coisa que não seja em você, desculpe… que não seja nele, excelência. Foram três semanas tortuosas, em que eu trabalhei mal, vivi mal, comi e dormi mal, tão somente por um fator – a falta que sinto. E se eu pudesse fazer qualquer coisa pra reparar, eu faria.

– É, seu Rodrigo, o que o senhor tem a dizer?

– Algo bem simples, e que dito aqui, diante de todos vocês, pode ganhar um ar solene, sabe? Porém, enfim. Eu poderia, sem medo de errar, dizer que me envaidece essa redenção de quem por tanto tempo foi meu foco, meu ar e meu norte. E também me envaidece saber que o que eu desejava era algo possível, plenamente natural e, antes de qualquer coisa, algo bom. Porém, e aí creio que todos concordem, há um momento a partir do qual os vitrais de nossas convicções se partem, e tornam-se difíceis de ser novamente reparados. Confesso que não posso, e nem jamais poderia, tentar juntá-los novamente.

Naquela hora nada mais precisaria ser dito. Um atordoamento momentâneo acometeu a todos. Um silêncio inesperado ressoou sinais inaudíveis. Até batimentos eram possíveis de se sentir. Rodrigo ergueu-se, desejou a todos um bom dia e, antes de sair, beijou a testa de Madalena.

 

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Moinhos da Vida

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on July 8, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

 

– Quem sabe a resposta?

Essa deve ser a pergunta mais frustrante para quem ministra aulas na maioria das escolas do governo. Ver os rostos daqueles jovens desestimulados, e que não acreditam poder reverter seus quadros de vida estudando, só não é mais angustiante porque reside, sempre, nos professores, aquela sensação eterna de que uma força maior, um sinal divino, ou mesmo um acaso, intercederá e nos ajudará a resolver problemas quase sempre insolúveis.

E não era diferente naquela escola. Eu buscava nos semblantes deles algo que pudesse destacá-los, de alguma maneira, daquelas imagens que lhes estavam sempre associadas: pais alcoólatras, lares desfeitos, falta de comida e de roupas. Isso tudo sem considerar os eventuais envolvimentos com drogas e violência, que via de regra são levados para dentro da escola, e o ambiente passa a tornar-se um território demarcado por aqueles que podem mais e menos, ficando nós como meros coadjuvantes num cenário conhecido e repetitivo.

– Quem sabe a resposta?

O silêncio sempre ecoava. Evidentemente que às vezes era quebrado pelas ironias típicas de quem via o acento escolar como uma escala obrigatória para a justificativa de recebimento de abonos pagos por programas assistenciais, ou mais raramente pela insistência de pais, esses sim, sonhadores, o que apenas favorecia o aumento da vontade daqueles garotos de não estarem ali.

Por vezes, porém, exatamente a partir desses acasos pelos quais esperamos, o inusitado acontece e então nós nos vemos saboreando o doce gosto da boa surpresa, tornando-nos, nós mesmos, também garotos.

– Quem sabe a resposta?

– Eu sei, professor!

Naquele momento, esperando a galhofa que se seguiria após uma pergunta simples, e que consistia em saber se a literatura era mais importante do que a matemática, o que ouvi foi algo raro, quase inaudível, entretanto era algo que se insurgia frente àquela muralha de eterno silêncio e, mais importante ainda, era algo correto.

– Não sei se existe uma diferença, professor. A meu ver todas as matérias têm sua importância na nossa vida, sendo que somente no futuro uma ou outra vai ser mais útil.

Ainda que não tivesse sido uma resposta dada por um mestrando de alguma especialização acadêmica, ou mesmo um experimentado psicanalista envolvido em atividades de auto-ajuda, aquelas palavras reverberaram na minha cabeça e, fortes como um torniquete, pressionaram-me a me afastar do pensamento que me envolvia, de modo que continuei a perguntar:

– E quem vai decidir sobre a maior ou menor utilidade? Deus?

– Ele também. Mas a vida, muito mais. Muito mais até do que nós mesmos, professor. Eu não sei o que eu quero ser, nem sei se quero gostar mais de matemática ou literatura, mas sei que um dia vou saber.

Aquele garoto tinha, no máximo, uns quinze anos, e como a maioria da sala, estava fora da faixa-etária para a série, o que me deixou ainda mais curioso. Tanto que após o fim da aula resolvi saber um pouco mais a respeito de seus anseios, mesmo porque eu não me lembrava da sua fisionomia e tudo indicava que ele era novato na escola.

Contando sua história, ele disse que tinha se mudado da Zona da Mata para a Região Metropolitana porque os pais eram cortadores de cana, e naquele período de entre safra, a maioria dos lavradores ficava sem uma renda que lhes possibilitasse um sustento mínimo. Aliado a isso, a preocupação com os seus estudos já lhes mostrava que para atender àquela inteligência do garoto era preciso que se mudassem para a capital. O que foi feito.

Falamos de outras coisas, até de assuntos banais, e na despedida é que ele disse o seu nome – Pedro. Engraçado. Havíamos falado por tanto tempo e sequer eu tinha-lhe perguntado o nome, talvez porque a alegria da surpresa tivesse ofuscado um pouco as ações que a etiqueta nos impele.

À noite, já em casa, brincando com o meu filho de dez anos, que estuda numa escola particular e já tem uma noção do que mais gosta, especulei o quanto estamos, todos, fora do processo. Nós temos, no conforto da nossa poltrona e no controle da televisão, a possibilidade de vagar pela miséria ou riqueza mundial; de assistir acordos de paz ou guerras ferozes; de opinar interativamente, e não temos a capacidade de nos mover, de nos envolver de corpo e alma numa outra batalha, bem ao nosso lado, que tem seu ponto alto no interior de uma escola.

Restabelecido da overdose de realidade e absolutamente convicto do meu papel e da minha missão, que teria, melhor dizendo, que deveria ultrapassar os limites do meu descrédito, fui à escola, no dia seguinte, decidido a contribuir para uma mudança. Algo que envolvesse direção, professores, pais, monitores, alunos, governo, vizinhos. Algo que nos envolvesse e nos movimentasse. Eu era, ali, a verdadeira imagem da disposição e desprendimento, e os meus moinhos de vento eram todos aqueles problemas que me corroíam vorazmente. Eu era o Quixote de minh’alma.

Em frente à escola um aglomerado de pessoas, numa mistura de vozes ao mesmo tempo ensurdecedora e ininteligível. Eram alunos, transeuntes e vizinhos que se juntavam aquele turbilhão de pessoas.

– O que houve por aqui? – Perguntei meio que reflexivamente.

– Não vai haver aula, professor.

– E por que não? – Insisti.

– Um aluno foi assassinado ainda há pouco. Tentaram assaltar, mas como ele não tinha nada, nem tênis, decidiram fazer essa barbaridade.

Poucas vezes na vida senti um gelo por dentro, como senti naquele dia. De um modo instintivo perguntei quem havia sido o aluno, mas já sabia quem seria.

– Ele era novato.

O turbilhão agora era na minha cabeça, e era impossível diminuir a velocidade com que os pensamentos orbitavam na minha mente. Seria possível isso? Seria justo, ou coerente? Este teria de ser o curso exato dos acontecimentos, ou do destino? Existe destino?

A força dos ventos da minha mente rodopiava meus moinhos.

– Tudo bem com o senhor, professor? – perguntava uma voz às minhas costas. Era Pedro, e seu rosto parecia um pouco assustado com tudo aquilo, embora muito mais estivesse eu, dada a possibilidade a que meus pensamentos me conduziam.

– Eu ouvi dizer que um aluno, um novato…

– Eu sei, professor, eu também o conhecia…

Naquele instante senti algo bom. Algo que se seguia a outra coisa anteriormente ruim. Senti, e me convenci, de que todos nós temos missões na terra e que, como seres frágeis, estamos propensos a essas variações emocionais. Não estamos em nada preparados, porém, para perdas de coisas que nos movem, sem um aviso de advertência.

Ao entrar na escola, estava ainda mais fortalecido, e de uma maneira estranha passei a notar detalhes antes despercebidos. Passei a notar, principalmente, que eu não notava quase nada ao meu redor.

Na volta pra casa não parava de pensar no inusitado. Olhando pela janela do carro, protegido de assaltos a tênis, imaginei o que seria mais importante – matemática ou literatura?

 

Homem com “R”…de reflexivo

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on June 24, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

 

O pior de você acordar de manhã, quando sequer dormiu, é o momento em que se dispersam as nebulosas lembranças de que tudo não passou de um sonho, e se retorna à cruel e surpreendente realidade.

Qual realidade?

A que descobri – que sou feio, asqueroso, preguiçoso e infiel. Tudo isso de acordo com a composição de uma senhora, num programa de televisão.

É lógico que diante de tamanha descoberta me vi obrigado a buscar ajuda, e procurei a principal pessoa a quem recorrer nessas horas – minha mãe. Pois é. Nada de atitudes precipitadas, partindo pra aconselhamentos psicológicos ou perguntando pra antiga namorada. Nada disso. Buscar na santa mãe o aconchego de palavras de conforto é o remédio ideal pra esse tipo de pós-trauma.

E não é que a coisa começou a mudar? Após repassar-lhe toda sorte de desqualificações, termos pejorativos e adjetivos depreciativos, lançados sobre mim pela impetuosa dona-de-casa, ela fitou-me nos olhos e disse-me duas coisas. A primeira – “Rosamunde e Clarice podem responder-lhe melhor que eu.”; a segunda – “Estou atrasadíssima para o supermercado.”

Não preciso nem dizer que só a deixaria sair daquela casa, entrar naquele carro e ir às compras, depois que me dissesse onde eu encontraria aquelas suas amigas, ou vizinhas, sei lá, chamadas Rosamunde e Clarice; qual rumo eu deveria tomar, em qual bairro ou clínica deveria procurar, afinal estava em jogo a elevação ou execração da auto-estima de um verdadeiro homem.

A paranóia delirante já me tomava, quando, enfim, minha mãe me esclareceu tratar-se de Rosamunde Pilcher, escritora escocesa, autora de inúmeras obras literárias, dentre elas “Setembro” e “O Regresso”, e Clarice Lispector que, lógico, dispensa comentários.

Evidentemente que procurei, dali mesmo, respostas delas para o meu escárnio. Não precisei demorar muito. Encontrei em suas obras algo que dito, apenas, não seria o suficiente. Teria de ser escrito. E escrito por duas mulheres maravilhosas, com o propósito de ser perpetuado, de acalentar sonhos e remediar controvérsias.

E se eu tivesse o dom delas, com suas sagazes visões de mundo, sei até o que escreveria, para leitura de reles mortais como eu. Inspirado em Rosamunde, escreveria:

“… seguramente Deus se utilizou também de seu arcanjo mais fiel, seu mais atento mensageiro e sua onipotente graça na minha criação. E quando digo “minha”, o faço desconsideradas as profusões feministas, referindo-me ao macho, em seu gênero mais específico. Eu sou este ser belo, que encanto pelos meus atributos e me completo pelas minhas ações. Qual mulher, independente de cor, classe ou paixão, não vê a minha boca como fonte intangível de magia e que não sente meu beijo como um gosto de vida e de nostalgia?

O meu corpo, visto sob um ângulo eminentemente feminino, e guardadas as óbvias exceções, representa os eternos Adônis e Apolo, moldes da beleza masculina. Em essência, representa também o Norte, o objetivo, o caminho e o desejo da alma feminina.”

Reerguido meu ego e restaurada minha auto-estima, e tendo incorporado o espírito clariceano, escreveria:

“ O que seria eu, afinal?

Seria eu, de fato, obra de Deus?

Teria eu sido uma composição da Natureza, para que a síntese da beleza fosse igualmente dividida?

Ou teria nascido de um raio de luz? Mas aquele primeiro raio do dia. Aquele primeiro raio de sol que, quando vemos, temos a certeza do milagre de cada amanhecer?

Importa, porém, que eu existo.

Que existem problemas é certo, mas existem tantas virtudes…e tantas.

Existem meus sorrisos e encantos; minhas mãos, meus toques, minha fala e meu beijo.

Existe a obra harmônica, a obra humana e a obra visual.

Existe ‘Eu’, afinal.”

E então, lendo estas passagens, apenas uma coisa me viria à mente – eu poderia ser mais reflexivo.

Eu poderia ser também mais poesia, mais atenção às pessoas que me cercam, mais “toque” naqueles que amo e quero bem, mais presença com Deus, mais afago na cabeça do meu pai.

Eu poderia ser, muito mais, o homem que eu deveria ser.

 

A Festa do Crote

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on June 3, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

 

– Eu não acredito, Nina. Você pegava as flores do cemitério?

– Claro! E qual era o problema? Elas eram lindas, estavam sempre bem arrumadinhas, tinham uma fragrância maravilhosa… e eram de graça.

A conversa girava em torno do hábito delicado de uma menininha de dez anos que presenteava os seus com toda variedade possível de flores – rosas, crisântemos, girassóis, bromélias, até as hortênsias e os lírios eram recrutados pela avidez da garota na hora das homenagens. Honras não muito convencionais, é verdade, já que eram colhidas imediatamente após os seus repousos, mas o que tinha isso demais, na cabecinha serelepe de Nina, se o importante era a alegria que causavam?

As flores tinha um certo poder mágico sobre ela. Inebriavam-na com seus cheiros suntuosos e abriam em sua mente largos portões em busca das fantasias de menina, nas quais ela se via mergulhando em mares azuis, amarelos e rosas, correndo em campos imensos, mas sempre, ao final, presenteando alguém com suas obras refeitas, transformando em pura alegria o que há pouco representava tristeza.

-Certo. Tudo bem. Mas, Nina, diz uma coisa… você era criança e eu vejo que a intenção era lúdica, bonita mesmo, mas você não acha estranho, não? Pôxa… num cemitério?! Não tinha medo, não?

-Rapaz, quando eu via aqueles crotes…

– Não seria cróton?

– Não, não. Crote mesmo. Então… quando eu via aqueles crotes, eu não conseguia me conter. A intenção era mesmo de arrumar os buquês, que já vinham lindos de morrer. Nossa… eu falei “de morrer”?

– Falou sim, mas não te preocupes, eu sei que viver e morrer, neste caso, estão tão próximos que sua referência tá certíssima.

– Era algo magnetizante, sabe? De alguma maneira, aquilo era pra mim como que uma ajuda a quem estava se despedindo desse mundo. Quando eu pegava aquelas flores e as distribuía, era como se eu estivesse repassando ao mundo uma parte do bem querer que as pessoas queriam demonstrar ao levá-las ao cemitério. Eu me sentia uma mensageira do bem. Uma mensageira de coisas boas e que não se vêem.

A descrição que ela fazia era algo que realmente nos conduzia a um pensamento de ternura, uma leveza de espírito que até nos colocava dentro da pele dela, e éramos nós mesmos os arquitetos das ações. No fundo, nós nos víamos aguardando os cortejos passarem e já íamos meio que compondo os formatos dos buquês que iriam ser o alvo do nosso saque. Uma imersão num sonho que não era nosso e que, na verdade, nem sonho era.

Era uma viagem que eu já tinha visualizado. Um frenesi que em Felicidade Clandestina nós dividíamos com a personagem que roubava rosas dos jardins frondosos, mas que aqui, na saga de Nina e seus crotes, nós compartilhávamos com uma heroinazinha que irrompia por entre portões e gradis, por entre covas e túmulos, buscando suas flores e sonhos, seus ímpetos e anseios, buscando o sorriso grato pelas flores ganhas.

– Uma coisa, porém, você ainda não disse. Por que, ao contrário da menina de Clarice, você resolvia fazer tudo sozinha?

– Ah, meu bem. Era tudo muito simples. Não havia uma sensação de solidão, mesmo porque os crotes eram quem me acompanhavam. Eu me sentia estranhamente segura com eles. Eu lhes falava muito, a bem dizer. Acho até que ninguém entenderia muito bem, caso eu chamasse. Você, por exemplo, o que diria se, aos dez, fosse convidado por uma amiguinha a apanhar flores recém postas num cemitério, mesmo elas sendo deslumbrantemente belas e sendo a intenção maior de presentear pessoas?

– Eu pensaria que você estava meio pinel.

– Pois é…

– Sem dúvida, Nina, a história é linda. Empolgante e sensibilizadora. E eu me arrisco até a dizer qual a data do ano que você mais gostava, na sua infância.

– Nem precisa, querido. Dois de novembro.

 

Amiga do Peito

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on May 20, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

 

– Ama?

– Claro, amor.

– Diga.

– O quê?

– Que ama.

– Amo você.

– O quanto?

– Quanto o quê, amorzinho?

– O quanto você me ama, oras.

– Muito.

– Muito, quanto?

– Muito mais que o muito.

– E até quando?

– Até quando?

– É. Até quando você me ama, ou vai me amar?

– Pra toda vida, amor.

– Essa e outras vidas?

– Olha, meu amor… que eu amo e por quem respiro, são três horas da madrugada, eu tô cansadíssimo, tenho que acordar cedo e não sei se vou conseguir desse jeito.

– Ah, Rafa… você sabe muito bem que eu sou insegura mesmo, e que pelo fato de eu ser tão apaixonada por você eu preciso confirmar isso sempre.

– E isso inclui o meio, exatamente o meio, da madrugada, Pati?

– Mas eu não tenho culpa se isso às vezes me aflige.

– E por que isso te aflige, amor?

– Pense comigo. Eu sou louca por você.

– Sei.

– E não me vejo longe de você.

– Entendo.

– Então… se o que você sentir por mim não for o mesmo, ou na mesma quantidade, ou na mesma intensidade, eu vou ficar vulnerável, né?

– Vulnerável?

– Totalmente vulnerável.

– Pati, meu amorzinho. Você andou falando com alguém, hoje?

– Eu?

– É. Você.

– Por que você está me perguntando isso?

– Porque, minha vida, eu conheço muito bem a mulher com quem eu estou casado há cinco anos. E ao longo desses sessenta meses, sempre que alguma das suas amigas fala com você um assunto mais polêmico, você simplesmente não dorme, como agora, e não sossega até me acordar no meio da noite, como hoje. Quem foi?

– Foi a Fabi.

– Ai, de novo não. Novamente a Fabi? E o que ela te falou dessa vez?

– Ela apenas me repassou. Foi algo que as meninas do trabalho comentaram ontem.

– E eu já to até imaginando. A Fabi tem um jeito todo especial de conseguir repassar coisas que foram comentadas pelos outros.

– Ah… mas isso não vem ao caso.

– Realmente não. Conta.

– Pois é. Ela me disse que as meninas comentaram, e você sabe muito bem que as meninas…

– Pati, não enrola. Fala direto.

– Ela me disse que hoje em dia os homens são extremamente claros naquilo que sentem; que eles falam muito pras mulheres o quanto as amam, e que não conseguem viver sem elas. Essas coisas.

– E baseada no quê, ela disse isso?

– É aí que entram as meninas. Como você sabe, elas são solteiras, estão sempre em contato com outras pessoas solteiras e têm visto que os homens com quem se relacionam são assim, carinhosos, atenciosos e falam sempre. Ela até acha que tem a ver com essa onda de metro-sexualismo e tudo.

– E onde é que eu entro nessa história toda?

– Pois é. Elas também comentaram que nunca vêem você falando.

– Elas nunca me vêem falando?

– É.

– Que eu amo você, e que sou louco por você, e tudo?

– Isso.

– E o que você acha disso?

– Eu? Bem… não sei ao certo, e é por isso que estamos conversando, não é não?

– Olha, Pati, embora metro-sexualismo não seja o meu forte, e na verdade eu sequer saberia dizer o que faz, como se veste e como fala um metro-sexual…

– Eu te dou umas dicas, amor…

– Não, não precisa. Posso continuar?

– Claro, amor.

– Meu amor, não vai ser a quantidade de vezes que eu diga o quanto a amo que vai dar qualidade ao que sinto por você. O meu amor é presente, é profundo, é cristalino e verdadeiro, e com toda certeza já existia há muito tempo, antes mesmo de nos conhecermos. Prova disso foi o meu olhar patético pra você, na primeira vez que te vi, dizendo pra mim mesmo “eu amo essa mulher desde sempre; eu sonhei com ela; eu torci por ela… eu vivi pra ela.”

– Oh, amor…

– É também possível, meu amor, que eu não esteja falando o suficiente pra você que te amo, mesmo porque, Pati, dizer-lhe isso a cada minuto, toda hora e todos os dias, ainda não atenderia o meu desejo e nem ao que você merece. Você que merece tanto, e que amo tanto. Saiba, entretanto, amorzinho, que vou buscar melhorar. Mas se, ainda assim, eu não parecer a essência do que seria um aplicado “metro”, eu ainda serei o mais apaixonado, o mais absolutamente devotado e o mais amavelmente entregue dos homens.

– Ai, amor. Isso foi tão lindo. Agora eu me sinto bem melhor.

– Jura?

– Juro.

– Vamos dormir, então?

– Vamos.

– Amo você. Muito.

– Também te amo, Rafa.

– Tá bom.

– Tá bom? Mas eu pensei que você fosse dizer “muito mais que o muito”…

– Boa noite, amor.

 

Caxito

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on May 13, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

Se um dia me perguntarem o quanto o Caxito foi importante pra mim, a resposta vai ser rápida e sóbria, o que poderá parecer um sarcástico paradoxo, em função do que eu via naqueles dias – um reduto de conhecimentos. Posso até estar provocando sobressaltos e ressentimentos a toda ordem de pensadores ou intelectuais, porém, guardadas as proporções e respeitadas as comunidades que formaram grandes escritores, foi daquela fonte ali, daquele conjunto de coisas, do Caxito, que comecei a contrapor razões aos fatos, possibilidades à realidade e necessidades às perspectivas.

A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando: “O que vem a ser esse tal de Caxito, afinal?”. Pois bem, trata-se de um bairro, mas não um bairro qualquer, é na realidade um grande conglomerado de pequenas coisas. Um conjunto inicialmente organizado de ruas, que vai sofrendo uma espécie de mutação sócio-habitacional-cultural e, ao final, toma uma forma pretensiosa de bairro. Lá, como poucos, tive a oportunidade de ver, na letargia de atitudes, nas expressões idiomáticas, nas feições frustradas e nos bêbados inveterados, que aquela junção toda provocava uma espécie de comoção geral, de comiseração geral, em cada um e em todos, gerando certa acomodação natural frente às dificuldades, o que, invariavelmente, como num ciclo vicioso, gerava mais letargia, frustração e embriaguez.

Dos amigos da époça, lembro de todos – pelo menos de seus apelidos: Vaíta, Mi, Biuzinho, Nino, Novo Grande, Leto, Berval, Van e Dilá, que eram, em grande parte, aprendizes daqueles moradores mais antigos, conhecidos por serem cheios de deliciosas estórias mentirosas, o que os endeusava diante daquela gente; João Bocão, João Boi, Coquilha, Gerson Coquinho, Cara de Prega, Beto Perneta e Ontôin Cotó poderiam estar inseridos em qualquer obra autoral, já que traduziam o estereótipo de personagens literários; Cremilda Doida, com seus acessos, freqüentemente era atendida por minha mãe, alvo preferido também de Ernestina, uma bêbada sorumbática que, em seus píncaros de porre, chegava graciosamente em nossa casa, às duas horas da madrugada, gritando: “Santinha, meu amoooor!”. Entretanto, de quem eu mais lembro, na verdade, é de Vado Pipa. Um ser absolutamente hilário – quando estava bêbado, claro – que exercia um certo fascínio na garotada, creio eu pelo fato daquele futuro tragicamente almejado, de tornarem-se também bêbados divertidos. Lembro, inclusive, uma ocasião quando retornava pra casa, com meu pai, e vi nosso personagem, com uma garrafa de cachaça, totalmente ébrio, fitar-nos e cantar.

– Seu Santos… ela me deixou e foi morar com o guarda. Ela me deixou e foi morar com o guarda…

Trôpego, ainda tentou equilibrar-se e bambamente estatelou-se na lama, entre risos e outras cantorias, no que aproveitamos pra sair dali. O mais risível, porém, aconteceu quase duas décadas depois, quando numa noite dessas levava minha mãe de volta pra casa onde morei, e exatamente no mesmo lugar, com uma garrafa na mão, vejo Vado Pipa, velho, resistente, indiferente… e que me cumprimenta, cantando.

– Ei, Hugo… meu bom… ela me deixou e foi morar com o guarda. Ela me deixou e foi morar com o guarda…

Sorri compulsivamente, deixei minha mãe e notei o que há tempos não tinha me dado conta – ali ainda era o Caxito.

Freqüentemente eu me perguntava o que atraia tanta gente àquela conversão de ruas, e não fosse uma explicação dada por João Bocão a meu pai, seguramente ainda teria as mesmas dúvidas. A conversa surgiu durante um “rasga-rasga” ocorrido uma única vez, na sede do Palmeiras Esporte Clube – única gafieira do bairro – e que se estendeu, rapidamente, a todas as ruas.

No Palmeiras, às sextas e sábados à noite, o que se via era uma verdadeira profusão de cores, luzes e cenas hilárias, transformando aquelas pessoas que nos pareciam normais, perecíveis, alcoólatras e conformadas, em personagens vigorosos, alegres e irreverentes. Era uma pena que minha mãe não me deixasse sequer chegar perto do clube nessas noites, por isso eu tinha de fazer verdadeiras manobras pra entrar na cozinha de casa, sair pela porta dos fundos, pular o muro de Dona Lídia, passar pelo terreiro de Dona Cotinha para, depois de aproveitar o descuido de Cara de Prega na portaria, ter meus quinze minutos de puro êxtase, vendo as carícias suadas, os beijos excitados, as mãos nos peitos e as danças frenéticas ao som do merengue, tempo suficiente pra retornar sem ser percebido, e pensar no que aquilo representava pra um menino de onze anos.

No carnaval de 1980, dentro do Palmeiras, ocorreu um episódio que representava bem esse misto de coisas novas e impensáveis – o rasga-rasga. Era a quarta-feira de cinzas, mas nem por isso a alegria bizarra daqueles foliões, travestidos daquilo que, melhor que ninguém, sabiam retratar, tendia a diminuir. E o interessante era ver que, enquanto em Olinda o último dia era visto como algo absolutamente natural, buscando estender aquelas horas restantes tão somente pelo sabor que elas tinham, sentindo a falta do sobe-desce das ladeiras, do frevo e do maracatu, no Caxito parecia uma obrigação comum a todos a extensão do último dia de festa, da última tarde que, indo embora, levaria também o cobertor ilusório de toda aquela banal realidade.

A certa altura, Beto Perneta, que ainda encontrava-se de pé por pura insistência, já que de longe se notava, pelo tanto que tinha bebido, não saber sequer onde estava, puxou Cremilda Doida pela Cintura, certamente querendo fazer parte do trenzinho em que ela estava, e num ato meio reflexivo ainda deu algumas passadas naquele cordão, mas como o trem corria em círculos, o pobre Beto não conseguiu parar suas pernas, de tamanhos diferentes, e quando escaparam-lhe as mãos – àquela altura já na bunda da Doida – só conseguiu segurar-lhe a saia, que veio com ele, cambaleando, topando, gritando e só não se ferindo na queda porque conseguiu agarrar-se na camisa de João Boi, que foi rasgada na aterrissagem. Ainda sentado, ileso, com a mão da camisa no peito e a mão da saia na cabeça, vendo Cremilda – o exemplo da calma – com a mão estendida, esperando a veste, Beto Perneta respirou fundo, olhos fechados e cara azeda.

-Êita, que é bacalhau puro!

A risadagem, claro, foi generalizada e Cremilda nem pensou muito, o que não era surpresa pra ninguém, e arrancou, rasgou e jogou pra todos os lados os pedaços da camisa de Beto Perneta.

O que se sucedeu foi uma verdadeira tendência de rasgadura geral. Via-se pai rasgando genro, neto rasgando sogra, primo rasgando nora, desconhecido rasgando conhecido. A tal ponto daquilo tudo ultrapassar as paredes do clube e se estender às ruas, onde quem quer que fosse passando virava uma nova vítima dos contumazes rasgadores – que àquela altura eram todos – independente da qualidade do tecido, cor, molde ou detalhe. Pessoas indo pra casa, fugindo da folia, indo ao trabalho, ao hospital, voltando, todos eram sumariamente agarrados e rasgados, de uma maneira que em determinada hora o que se via eram os corpos seminus, no máximo com suas cuecas, anáguas ou sutiãs descoloridos e surrados, sobre um tapete enorme de retalhos do que haviam usado e, assim como que em transe, rindo daquele encontro de alegria carnavalesca, debilidade e descompromisso com qualquer pudor.

Nessa hora, com meu pai, no terraço de nossa casa, de onde assistíamos a tudo, João Bocão se aproximou dizendo:

– Sei não, Seu Santos… ou endoidô tudo, ou tá tudo querendo endoidá.

E nessa hora, mesmo que involuntariamente, com seu trocadilho, João me deu a luz do que era o óbvio. Quem estava ali, não só naquela hora, mas quem vivia ali, alimentava-se ali e fantasiava seus dias ali, estava querendo de fato “endoidá”. Mas, endoidar para demonstrar que não eram só as mazelas que faziam parte de suas vidas, mas também os sonhos. Sonhos de alegria e esperança. Sonhos, sobretudo, por algo que em nenhum outro lugar, com tanta intensidade, eles iriam atingir – a liberdade de estarem ali; o sonho pelo despudor de rasgarem suas roupas, como quem arranca uma chaga do corpo, e de peito, coração e alma abertos, demonstrarem que sempre seriam maiores do que aquelas feridas.

Na manhã seguinte, ainda a olhar aquela espécie de campo de batalha de tecelões, Vado Pipa se aproximou de mim e num de seus acessos de lucidez – lógico que irremediavelmente raros, mas que nem por isso deixavam de ter a importância real em nossas impressões de mundo – comentou:

-Coisa linda, né?

– O que é lindo, Vado?

– Esses pedaços de roupas pelo chão. Olha lá a camisa de Nino, o meu filho; o calçãozinho de Pirrita, irmão de Getúlio… tem até a saia de Cremilda, ali ó…

O que me impressionava é que a cada peça, ou resto dela, havia uma identificação do dono e um fato pitoresco.

– Êita! Aquele sutiã ali eu conheço. Neide do Pão tava com ele na sexta-feira do carnaval, lembra? Tava de blusa branca, choveu e o biquinho do peito passava por esse buraquinho aqui. – Enfiando o dedo mínimo pelo orifício.

Nessa hora rimos bastante e eu fiquei deslumbrado com aquele sujeito pequeno, franzino e das pernas tortas, que conseguia ser tão preciso nas suas pequenas coisas e despertava um curioso sentimento de admiração em quem se colocava ao seu lado, estampando no rosto um sorriso de contentamento e realização por estar ali, sempre, todos os dias, transformando o comum em algo singular e especial.

– Sabe, Hugo, a gente precisa melhorar esse negócio. – Eu não entendi, mas Vado continuou.

– A gente precisa organizar melhor esse carnaval. Como é que esse povo brinca assim e joga a roupa em tudo quanto é lugar? Tudo bem que tá rasgada, mas poderiam jogar num lugar só, né não?

Os paradoxos eram corriqueiros no Caxito, e aquele momento se tratava de um deles. A grandeza de um pensamento humilde e a profunda e irretocável banalidade de sua existência. Aquelas pessoas me mostravam o quanto a sensibilidade, a delicadeza e a fatalidade poderiam fincar suas marcas em minhas memórias, fazendo-me refém de meus medos e, ao mesmo tempo, mostrando-me a beleza de que tudo aquilo o que é bom está ao nosso alcance.

Naquela hora, João Bocão se aproximou e foi logo fazendo seu comentário:

– Eu acho que vai chover, hoje…muito.

 

Salto Alto

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on April 29, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

– Realmente as lembranças são boas, mas você tem de reconhecer que nós chegamos a esse ponto graças às suas implicâncias.

– Implicâncias?! Meu querido… implicâncias são nada, diante dessa sua postura…dessa intransigência… desse machismo todo. Machismo, isso…é esse o termo.

– Agora você fala em machismo, Elvira, mas na época ficava toda dengosa dizendo “como me fortalece essa sua preocupação, benzinho”. Vê lá aquele cara, o dos óculos na boca, eu tenho certeza que ele tá dizendo pra ela que o decote tá muito escandaloso.

– Olha, Cuca, se ele tá falando algo a respeito do decote, é o que vai fazer com ele depois daqui. Não vê aquela cara?

– Cara de quê? De quê?

– Esquece. Poderia pegar outra taça pra mim, por favor?

– Pego, desde que você não me peça com esse jeitão de juíza de paz em audiência, afinal de contas, ainda não estamos separados.

– Cuquinha, anjo, pega uma tacinha pra mim, lindo?

– Você sempre usava “anjo” quando não tava legal ou queria brigar.

– Pega uma taça, pô!

– Então, Cuca, como estão as coisas? A Elvira tá linda hoje, heim?

– Uma diva por fora e uma centuriã por dentro. Só tá dando estocada, Marcão.

– É assim mesmo, rapaz. Você não viu quando eu me separei da Sandrinha? Todo santo dia era uma discussão… e à noite também.

– Só que a Sandrinha não passava na tua cara que você tinha estragado tudo. Pra falar a verdade, eu nem via vocês discutindo tanto.

– É… diferentemente da Ester, ela aceitou o desgaste da relação.

– E a Ester não tá aceitando?

– Ela não acredita em desgaste da relação, meu querido. Ela vê o término do casamento como o final inevitável de uma relação de interesses, mesmo que, no nosso caso, o interesse maior fosse apenas sexo. Toma esse chileno aqui.

– Não tinha o cabernet argentino que você gosta, mas esse chileno aqui é divino.

– Edvaldo Augusto… esse argentino a que você se refere foi quando nós começamos a namorar, e eu nem gostava de vinho na verdade.

– Tá vendo só? Eu me esforço, procuro ser um cara atencioso, e o que ganho sempre? Patada.

– Calma, Cuca. Lembre-se que estamos discutindo nossa relação.

– No aniversário da filha do nosso melhor amigo?

– Do seu melhor amigo. Ele deixou de ser o meu, quando terminou com a Sandrinha.

– Mas que barbaridade, Elvira. Você… uma mulher inteligente, moderna, que normalmente aceita os defeitos e decisões das pessoas, com esse preconceito ridículo.

– Você acha?

– Acho.

– Engraçado. Eu poderia jurar que sendo gêmeas univitelinas e tendo o Marcão começado com a Ester um mês depois que eles acabaram, isso já seria motivo suficiente.

– Olha quem tá chegando.

– Oi, pai.

– Filhinha. Cuca. Tô interrompendo alguma coisa?

– Imagina, seu Berto. A gente tava somente divagando sobre contingências de relação a dois.

– Especialmente quando essa relação a dois diz respeito a duas pessoas muito próximas, que nem estão tão próximas assim.

– Minha gente…faz trinta anos que eu e sua mãe decidimos não desgastar a relação com esse tipo de discussão.

– Mas vocês já estão separados há vinte anos.

– Isso não importa para o contexto. Mas pelo menos nos dez primeiros anos deu certo.

– É o que eu tento sempre dizer pra ela, seu Berto. Não adianta discutir o que pode ser tranqüilamente relevado.

– Acontece, Cuca, que a arte de relevar, tão eficientemente desempenhada por você, é exatamente o que agrava as coisas. Como agora, por exemplo.

– Agora? Qual exemplo? O que eu fiz?

– Você me trazendo aqui, na casa do “ex” da minha irmã, depois d’ele ter feito o que fez, achando tudo normal.

– Mas o que tem de errado numa separação e num novo casamento?

– Realmente não tem nada errado, minha filha.

– Ocorre que ele já traia a Sandrinha antes de separar, papai.

– Realmente tá errado, Cuca.

– E o pior é que esse aí sabia de tudo.

– Isso não é verdade, Elvira, eu apenas achava.

– Ah é? E quem foi que apresentou a Ester ao Marcão?

– Eu, como você sabe.

– Só não sabia que vocês já tinham namorado antes.

– Ela foi minha namorada aos treze anos, Elvira.

– O que é pior, porque esses sentimentos antigos nunca passam e nem são esquecidos.

– Nossa, Elvira, dessa vez você tá ultrapassando todas as possibilidades de imaginação fantasiosa.

– Uma imaginação que hoje tem uma filha aniversariando e não tira os olhos de você.

– Agora você exagerou. Tô me sentindo até ofendido com isso. Eu jamais teria alguma coisa com a mulher do meu melhor amigo.

– Minha filhinha… eu acho que você tá saindo do foco também.

– Se tem algo que eu não perdi foi o foco, papai. O foco nos olhos da Julianinha, verdes como os do Cuca; o foco no nariz, arrebitado feito o do Cuca, e até no jeitinho dela sorrir…exatamente como o do Cuca.

– Essa foi demais… uma filha com a Ester. A Julianinha ser minha filha é a coisa mais maluca que eu poderia ouvir nesses dez anos.

– Eu também.

– Papai…o senhor tem que ficar do meu lado.

– Bem, com licença, acho que meu celular tá vibrando. Filhinha. Cuca.

– E o que tá vibrando agora é a minha cabeça. Olha , Elvira, a gente se fala em casa. Pode ficar com o carro que eu pego um táxi.

– Isso. A consciência já tá pesando.

– Seu Berto, empresta o telefone?

 

Avelino

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on April 15, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

Já fazia parte da rotina dele sentar-se no tronco em frente à casa, olhando aquela terra árida que não tinha cheiro de nada, contemplando uma estrada barrenta, sem outras casas além da dele e sem visões de um tempo bom e de boas lembranças.

A imersão naqueles pensamentos era diária, assim como eram diários os sonhos de uma vida sem aquele sofrimento todo. Não era nada físico. Ele nunca fora castigado pela mãe, que além de saber do empenho dele na organização dos plantios e no trato com os animais, reconhecia os valores de um filho bondoso e preocupado com os seus.

O sonho era o de deixar todo aquele cenário seco e sem vida, com uma sede eterna de tudo o que refrigera a alma e alenta um semblante entristecido. Dona Maria da Luz, a mãe, já tinha notado aquele olhar, e também já tinha imaginado que uma partida dele não era algo remoto, ao contrário, considerando que todos daquela idade já tinham partido dali, ficando apenas os mais velhos e as crianças. Ela sabia que isso era possível, mas rezava pra que não se concretizasse, afinal eram somente eles dois naquela casa, além da irmã menor, que por razões óbvias não daria conta de tantas responsabilidades naquele sítio.

Ele avaliava tudo e sabia bem o que representaria uma partida, deixando as duas com toda aquela carga de coisas, mas muito mais com a impressão de que ele estaria fugindo de algo que não poderia vencer. E de fato ele não conseguiria jamais. Como superar tanta seca, tanta fome, tanto sol, tanta solidão e abandono? Ele não conseguiria jamais. E além do mais, agora estava mais focado do que nunca, principalmente depois da conversa com José Pedro, amigo de infância, que retornara da capital e estava ali por aquelas bandas visitando parentes, e que também lhe fizera ver que a única alternativa era o êxodo, a saída, a fuga, se assim entendesse. Mas não uma retirada desesperada e sem propósito; não um rompimento com suas raízes e história, com sua família e passado. Seria uma saída estratégica, momentânea, apenas o tempo necessário para uma conquista de vida, de posses e de solidez, após o que retornaria e resgataria os que ficaram.

– Mas Zé… como eu poderia deixar minha mãe e minha irmã aqui, assim?

– Avelino, rapaz… ficando aqui é que você vai ajudar menos ainda, homem. Vai ficar nessa vida sofrida, sem esperança e sem futuro. Lá, pelo menos, você vai ter uma garantia, um emprego e uma moradia, até poder se arranjar sozinho.

Era algo em que ele não conseguia parar de pensar. Os últimos anos tinham sido duríssimos, sem perspectiva alguma do que pudesse trazer qualquer mudança, porém ele também sabia que havia algo além da sofreguidão. Havia uma certa sensação nostálgica em ser o arrimo da casa e a pessoa em cujos ombros pesavam todas as dependências. Era uma sensação incoerente, ele sabia. Como sabia também que coerência era um artigo extremamente raro naquele lugar, especialmente naqueles dias. E naquelas horas ele se sentia resoluto.

Partiu, enfim, na lua cheia de dezembro, querendo acreditar que olhando pra ela teria alguém com quem conversar e com quem se ressentir. Saiu enquanto todos dormiam, obedecendo ao que a mãe dissera, ela que não suportaria abraçá-lo na despedida e nem olhá-lo nos olhos pra desejar-lhe sorte. Nesse pedido, ele sabia bem, estavam todos os clamores calados e todos os choros contidos que lhe seriam ditos se ela o visse partir. Embora forte, a tez enrugada da velha sempre estremecia quando o assunto envolvia partidas, com os olhos lacrimejando e o olhar cabisbaixo, sem qualquer palavra, apenas soluços compassados e a respiração perturbada. Não era a primeira vez que ela passava por aquilo. O marido, muitos anos antes, tomara a mesma decisão, e com o mesmo ímpeto buscou uma fuga ensandecida, deixando todos aos cuidados de Dona Maria da Luz e de um futuro incerto, ou certo, já que, conforme ela previu, ele não mais voltou.

Agora, porém, o quadro era outro e a saída do filho soava como algo apocalíptico. Como, afinal, iriam sobreviver? Como suportariam, sem a força, a perseverança e a solicitude do jovem, àqueles tempos de penúria? Mas em momento algum qualquer palavra foi proferida. Nada foi dito. Nenhum lamento saiu dela, além do lamento de uma mãe pela perda do filho. Um filho que não voltaria, envolvido que seria por um mundo grotesco. Um mundo novo e feroz, que de tanto açoitar-lhe com maldade e sofrimento, apagaria de sua memória as lembranças de vida e os laços com o passado, e apagando o passado, apagaria o futuro delas.

E foi nesse embaço de coisas que ela levantou de manhã, sentando no tronco em que o filho sempre sentava e olhou aquele risco de nuvem que mais lembrava um galho de aveloz. Contemplando uma estrada barrenta e olhando aquela terra árida que não tinha cheiro de nada, ela sentiu que o sol estava mais quente do que de costume e o som do silêncio era ainda mais triste que outrora.

 

 

 

Um Céu Imenso

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on April 8, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

A cadeira se encontrava exatamente no mesmo local. As teias que a recobriam davam-lhe um contorno sutil, de modo que o quadro de abandono do quarto era encoberto por aquele manto prateado, luzindo ao abrir da janela e mantendo intocáveis as lembranças há muito guardadas de uma época de alegria, dor e tristeza.

Remanescendo de uma turva lembrança, que embora agora estranha, era ainda uma visão que me enternecia muito, vi tomarem forma as estantes de livros, a cortina cinza que combinava com aquela extensão de céu sempre chuvoso, e que me trazia, junto com as gotas, o toque mágico do horizonte, quando estendia o rosto pela janela e permitia à chuva desempenhar o papel de confidente e mensageira de uma embalada esperança. Senti a mesma brisa daquelas noites solitárias, daqueles momentos de intangível leveza, em que me sentia num vôo silencioso, rasgando ares sem fim e tendo a minha frente apenas o infinito, irretocável e belo, chamando-me a um mundo desconhecido do meu e a uma vida desconhecida da minha.

Senti o mesmo tremor no assoalho do quarto, de quando ouvia os passos na escada e num rasgo impetuoso de agonia gelava-me o sangue, sufocava-me o peito e eriçava-me o coração, num batimento louco arritmado, vendo surgir, gigantesco e enfurecido, a imagem de meu pai.

– Moleque! Eu disse que não queria você com aquela vadia.

– Ela não é vadia. Só está querendo me ajudar.

– Ajudar a tirar você dessa família, de junto dos seus irmãos.

Meu pai jamais imaginaria o que era estar ao lado da Dona Mariana. Impossível também para um menino de doze anos pensar nela como um ser humano normal. Impossível não ser hipnotizado por uma profunda sensação de êxtase quando a via, em qualquer que fosse o momento, especialmente no primeiro cumprimento do dia.

– Tudo bem, Vitinho? Hoje você parece muito mais encantador e sorridente do que da última vez. Andou ganhando algum presente?

– Não, senhora. Só tô feliz porque tô mesmo.

Hoje eu vejo, sentindo ainda o veludo daquela voz, que aquele jeito cândido, aquela beleza sublime de quem transpirava ternura, era única e simplesmente o que ela era. O seu tom e o seu toque, o rosto delineado lembrando a face do bem, e um sorriso angelical que irradiava pura compaixão, deixaram-me instintivamente apaixonado no primeiro segundo que a vi.

Eu a havia conhecido no mesmo dia em que minha mãe morrera. Ao ver-me chorando no corredor do hospital, sem jamais termos-nos falado antes, ela me deu um abraço afetuoso e alisando minha cabeça e limpando minhas lágrimas, teceu-me os mais belos comentários a respeito de minha mãe que ninguém jamais dissera. Citou frases que ela havia dito, pessoas que havia ajudado e fez-me ver, da maneira mais cristalina possível, que o fazer o bem era o valor mais inalienável que poderíamos ter e repassar.

Minha cabeça girava feito um carrossel. Muito mais pela apaixonante presença daquela diva, do que pelo enredo de dor pelo qual passava naquele dia. Na ocasião não entendi muito bem a iniciativa de Dona Mariana e perguntava-me, a todo momento, o que a movia a tamanho gesto.

Muito mais complicado era tentar entender a reação negativa de meu pai àquela amizade. A fúria que o tomava à simples citação do nome dela deixava-o de tal modo possesso que seus olhos esbugalhavam, a ponto das veias do globo ocular ficarem à vista, a veia da garganta inchar e, a cada berro, chuvas de saliva respingarem em quem o cercasse. Era completamente incompreensível tanta ira por alguém tão infinitamente amável como Dona Mariana.

De toda sorte, e por força de um impulso sempre incontido, jamais deixei de ir aos encontros com aquela minha musa. Apesar do medo das surras prometidas e do calafrio no momento do retorno pra casa, a necessidade de falar-lhe, de ouvir-lhe e de olhar-lhe se sobrepunha a quaisquer sentimentos humanamente conhecidos. O bombeamento do meu sangue aguçava toda a eletrização do meu corpo, e um misto de letargia e ligeireza, de estupidez e genialidade tomavam conta de minhas ações, gestos e sorrisos.

Como era de se esperar, um dia fiz-lhe referência ao ódio nutrido por meu pai, incluindo os detalhes mais constrangedores, à mínima referência a seu nome e, para minha surpresa, absolutamente nada lhe soou estranho. A impressão, inclusive, foi de uma fina dor na confirmação daquelas palavras, no marejamento daqueles olhos e naquele único sorriso, que não foi de um anjo, mas de uma alma ferida por uma estocada, direto no coração, da adaga da amargura.

– E você tem idéia do por quê dessa raiva?

– Não tenho, não. Mas é algo importante, não é?

– Eu já não falo disso há muitos anos. Nesse tempo todo, sempre imaginei que retomar a vida fosse fácil, depois de um duro golpe dado pelo destino. O fato, meu querido, é que os golpes só aumentam de intervalo, mas estão sempre presentes em nossos desígnios, turvando nossa mente e obrigando-nos a trincar nossos risos e enterrar nossos sonhos de felicidade.

Era sem dúvida uma hora difícil para ela, e meio que imaginando algo que pudesse afastá-la de mim a partir daquele momento, senti o meu sangue gelar e a chegada de um medo inapelável incorporou-se às minhas sensações, de modo que fechei os olhos e apenas escutei-a, calmamente.

– Meu amado Vitinho… eu conheci o seu pai muito antes d’ele se casar com a sua mãe. Nós nos amamos muito, mas por uma ironia do destino eu engravidei e tive de sair dessa cidade porque meus pais ficaram inconformados com aquilo. Seu pai nunca me perdoou, embora até hoje não saiba que quando o deixei carregava um filho dele no ventre.

– E onde está ele, agora?

– Infelizmente ele está morto. Ainda bebê, após as complicações do parto, ele não resistiu e os recursos médicos da época não ajudaram. Meu filho morreu aos dois dias de nascido. Se ele estivesse vivo hoje, teria exatamente o dobro da sua idade.

Aquela revelação esclareceu cada ponto nebuloso surgido em minhas indagações internas, e embora ela tivesse divagado por outros assuntos mais amenos, minha mente apenas resgatava aquelas palavras:”(…) os golpes só aumentam de intervalo, mas estão sempre presentes em nossos desígnios(…)”, e por mais que aqueles olhos tristes me chamassem a atenção, eu pensava tão somente na dor daquela mulher, na sua tão contida angústia, embora ninguém pudesse duvidar da alegria que ela sempre nos demonstrava.

Como eu amei aquela mulher! E amei-a muito mais após aquela tarde. Após sentir que apesar de tanta dor, desesperança e eventualmente castigo, seu semblante era do mais sereno amor e enternecimento.

Para minha dor, porém, perdi, naquele instante, minha amada. Ao sair novamente da cidade, dessa vez para não mais voltar, e a exemplo do que ocorrera com meu pai, ela levou consigo, sem perceber, uma parte de mim, a parte que mais me era imprescindível – a alegria de minh’alma.

Tocando agora a janela, onde ao longo dos anos me debrucei, viajo junto daquele meu eu e, planando por um céu imenso, ensaio um contato com Dona Mariana, ícone de meus sonhos e senhora dos meus pensamentos, com quem vivi, cresci e amei, numa vida sem desígnios, sem golpes e sem dores. Numa vida onde ainda era-nos permitido sonhar.

Free Not to Vote

In America, Arts & Letters, Austrian Economics, Libertarianism, News and Current Events, Politics on October 22, 2014 at 8:45 am

Allen 2

This piece first appeared here as a Mises Emerging Scholar article for the Ludwig von Mises Institute Canada.

The 2014 U.S. midterm elections are coming up, and I don’t intend to vote. A vote is like virginity: you don’t give it away to the first flower-bearing suitor. I haven’t been given a good reason, let alone flowers, to vote for any candidate, so I will stay home, as well I should.

This month, my wife, a Brazilian citizen, drove from Auburn, Alabama, to Atlanta, Georgia, on a Sunday morning to cast her vote for the presidential election in Brazil. She arrived at the Brazilian consulate and waited in a long line of expatriates only to be faced with a cruel choice: vote for the incumbent socialist Dilma Rousseff of the Workers’ Party, for the socialist Aécio Neves of the Brazilian Social Democracy Party who is billed as a center-right politician, for the environmentalist socialist Marina Silva of the Socialist Party, or for any of the other socialist candidates who were polling so low that they had no chance of victory. Brazil maintains a system of compulsory voting in addition to other compulsory schemes such as conscription for all males aged 18.

Logan Albright recently wrote about the folly of compulsory voting, support for which is apparently growing in Canada. He criticized the hypocrisy of an allegedly democratic society mandating a vote and then fining or jailing those who do not follow the mandate. He also pointed out the dangers of forcing uneducated and uninformed citizens to vote against their will. This problem is particularly revealing in Brazil, where illiterate candidates have exploited election laws to run absurd commercials and to assume the persona of silly characters such as a clown, Wonder Woman, Rambo, Crazy Dick, and Hamburger Face, each of which is worth googling for a chuckle. The incumbent clown, by the way, was just reelected on the campaign slogan “it can’t get any worse.” Multiple Barack Obamas and Osama bin Ladens were also running for office, as was, apparently, Jesus. The ballot in Brazil has become goofier than a middle-school election for class president.

Even in the United States, as the election of Barack Obama demonstrates, voting has become more about identity politics, fads, and personalities than about principle or platform. Just over a decade ago, Arnold Schwarzenegger became the Governor of California amid a field of second-rate celebrities while a former professional wrestler (the fake and not the Olympian kind of wrestling) Jesse “the Body” Ventura was winding up his term as the Governor of Minnesota. Today comedian Al Franken holds a seat in the United States Senate. It turns out that Brazil isn’t the only country that can boast having a clown in office.

No serious thinker believes that a Republican or Democratic politician has what it takes to boost the economy, facilitate peace, or generate liberty. The very function of a career politician is antithetical to market freedom; no foolish professional vote-getter ought to have the power he or she enjoys under the current managerial state system, but voting legitimates that power.

It is often said, “If you don’t vote, you can’t complain.” The counterpoint is that voting ensures your complicity with the policies that elected politicians will enact. If you don’t vote, you lack complicity. You are not morally blameworthy for resisting the system that infringes basic rights or that offends your sense of justice and reason. You have not bestowed credibility on the government with your formal participation in its most sacred ritual. The higher the number of voters who participate in an election, the more legitimacy there is for the favored projects of the elected politicians, and the more likely those politicians are to impose their will on the populace by way of legislation or other legal means.

Refusing to vote can send a message: get your act together or we won’t turn out at the polling stations. Low voter turnout undermines the validity of the entire political system. Abstention also demonstrates your power: just watch how the politicians grovel and scramble for your vote, promise you more than they can deliver, beg for your support. This is how it ought to be: Politicians need to work for your vote and to earn it. They need to prove that they are who they purport to be and that they stand for that which they purport to stand. If they can’t do this, they don’t deserve your vote.

Abstention is not apathy; it is the exercise of free expression, a voluntary act of legitimate and peaceful defiance, the realization of a right.

There are reasonable alternatives to absolute abstention: one is to vote for the rare candidate who does, in fact, seek out liberty, true liberty; another is to cast a protest vote for a candidate outside the mainstream. Regardless, your vote is a representation of your person, the indicia of your moral and ethical beliefs. It should not be dispensed with lightly.

If you have the freedom not to vote, congratulations: you still live in a society with a modicum of liberty. Your decision to exercise your liberty is yours alone. Choose wisely.

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