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Moinhos da Vida

In Arts & Letters, Creative Writing, Fiction, Humanities, Literature on July 8, 2015 at 8:45 am

Hugo Santos

Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”

Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).

 

– Quem sabe a resposta?

Essa deve ser a pergunta mais frustrante para quem ministra aulas na maioria das escolas do governo. Ver os rostos daqueles jovens desestimulados, e que não acreditam poder reverter seus quadros de vida estudando, só não é mais angustiante porque reside, sempre, nos professores, aquela sensação eterna de que uma força maior, um sinal divino, ou mesmo um acaso, intercederá e nos ajudará a resolver problemas quase sempre insolúveis.

E não era diferente naquela escola. Eu buscava nos semblantes deles algo que pudesse destacá-los, de alguma maneira, daquelas imagens que lhes estavam sempre associadas: pais alcoólatras, lares desfeitos, falta de comida e de roupas. Isso tudo sem considerar os eventuais envolvimentos com drogas e violência, que via de regra são levados para dentro da escola, e o ambiente passa a tornar-se um território demarcado por aqueles que podem mais e menos, ficando nós como meros coadjuvantes num cenário conhecido e repetitivo.

– Quem sabe a resposta?

O silêncio sempre ecoava. Evidentemente que às vezes era quebrado pelas ironias típicas de quem via o acento escolar como uma escala obrigatória para a justificativa de recebimento de abonos pagos por programas assistenciais, ou mais raramente pela insistência de pais, esses sim, sonhadores, o que apenas favorecia o aumento da vontade daqueles garotos de não estarem ali.

Por vezes, porém, exatamente a partir desses acasos pelos quais esperamos, o inusitado acontece e então nós nos vemos saboreando o doce gosto da boa surpresa, tornando-nos, nós mesmos, também garotos.

– Quem sabe a resposta?

– Eu sei, professor!

Naquele momento, esperando a galhofa que se seguiria após uma pergunta simples, e que consistia em saber se a literatura era mais importante do que a matemática, o que ouvi foi algo raro, quase inaudível, entretanto era algo que se insurgia frente àquela muralha de eterno silêncio e, mais importante ainda, era algo correto.

– Não sei se existe uma diferença, professor. A meu ver todas as matérias têm sua importância na nossa vida, sendo que somente no futuro uma ou outra vai ser mais útil.

Ainda que não tivesse sido uma resposta dada por um mestrando de alguma especialização acadêmica, ou mesmo um experimentado psicanalista envolvido em atividades de auto-ajuda, aquelas palavras reverberaram na minha cabeça e, fortes como um torniquete, pressionaram-me a me afastar do pensamento que me envolvia, de modo que continuei a perguntar:

– E quem vai decidir sobre a maior ou menor utilidade? Deus?

– Ele também. Mas a vida, muito mais. Muito mais até do que nós mesmos, professor. Eu não sei o que eu quero ser, nem sei se quero gostar mais de matemática ou literatura, mas sei que um dia vou saber.

Aquele garoto tinha, no máximo, uns quinze anos, e como a maioria da sala, estava fora da faixa-etária para a série, o que me deixou ainda mais curioso. Tanto que após o fim da aula resolvi saber um pouco mais a respeito de seus anseios, mesmo porque eu não me lembrava da sua fisionomia e tudo indicava que ele era novato na escola.

Contando sua história, ele disse que tinha se mudado da Zona da Mata para a Região Metropolitana porque os pais eram cortadores de cana, e naquele período de entre safra, a maioria dos lavradores ficava sem uma renda que lhes possibilitasse um sustento mínimo. Aliado a isso, a preocupação com os seus estudos já lhes mostrava que para atender àquela inteligência do garoto era preciso que se mudassem para a capital. O que foi feito.

Falamos de outras coisas, até de assuntos banais, e na despedida é que ele disse o seu nome – Pedro. Engraçado. Havíamos falado por tanto tempo e sequer eu tinha-lhe perguntado o nome, talvez porque a alegria da surpresa tivesse ofuscado um pouco as ações que a etiqueta nos impele.

À noite, já em casa, brincando com o meu filho de dez anos, que estuda numa escola particular e já tem uma noção do que mais gosta, especulei o quanto estamos, todos, fora do processo. Nós temos, no conforto da nossa poltrona e no controle da televisão, a possibilidade de vagar pela miséria ou riqueza mundial; de assistir acordos de paz ou guerras ferozes; de opinar interativamente, e não temos a capacidade de nos mover, de nos envolver de corpo e alma numa outra batalha, bem ao nosso lado, que tem seu ponto alto no interior de uma escola.

Restabelecido da overdose de realidade e absolutamente convicto do meu papel e da minha missão, que teria, melhor dizendo, que deveria ultrapassar os limites do meu descrédito, fui à escola, no dia seguinte, decidido a contribuir para uma mudança. Algo que envolvesse direção, professores, pais, monitores, alunos, governo, vizinhos. Algo que nos envolvesse e nos movimentasse. Eu era, ali, a verdadeira imagem da disposição e desprendimento, e os meus moinhos de vento eram todos aqueles problemas que me corroíam vorazmente. Eu era o Quixote de minh’alma.

Em frente à escola um aglomerado de pessoas, numa mistura de vozes ao mesmo tempo ensurdecedora e ininteligível. Eram alunos, transeuntes e vizinhos que se juntavam aquele turbilhão de pessoas.

– O que houve por aqui? – Perguntei meio que reflexivamente.

– Não vai haver aula, professor.

– E por que não? – Insisti.

– Um aluno foi assassinado ainda há pouco. Tentaram assaltar, mas como ele não tinha nada, nem tênis, decidiram fazer essa barbaridade.

Poucas vezes na vida senti um gelo por dentro, como senti naquele dia. De um modo instintivo perguntei quem havia sido o aluno, mas já sabia quem seria.

– Ele era novato.

O turbilhão agora era na minha cabeça, e era impossível diminuir a velocidade com que os pensamentos orbitavam na minha mente. Seria possível isso? Seria justo, ou coerente? Este teria de ser o curso exato dos acontecimentos, ou do destino? Existe destino?

A força dos ventos da minha mente rodopiava meus moinhos.

– Tudo bem com o senhor, professor? – perguntava uma voz às minhas costas. Era Pedro, e seu rosto parecia um pouco assustado com tudo aquilo, embora muito mais estivesse eu, dada a possibilidade a que meus pensamentos me conduziam.

– Eu ouvi dizer que um aluno, um novato…

– Eu sei, professor, eu também o conhecia…

Naquele instante senti algo bom. Algo que se seguia a outra coisa anteriormente ruim. Senti, e me convenci, de que todos nós temos missões na terra e que, como seres frágeis, estamos propensos a essas variações emocionais. Não estamos em nada preparados, porém, para perdas de coisas que nos movem, sem um aviso de advertência.

Ao entrar na escola, estava ainda mais fortalecido, e de uma maneira estranha passei a notar detalhes antes despercebidos. Passei a notar, principalmente, que eu não notava quase nada ao meu redor.

Na volta pra casa não parava de pensar no inusitado. Olhando pela janela do carro, protegido de assaltos a tênis, imaginei o que seria mais importante – matemática ou literatura?

 

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