Hugo Santos é professor de Literatura no Brasil e possui os cursos de Graduação e Mestrado em Literatura Brasileira, ambos conseguidos pela Universidade Federal de Pernambuco, no estado de Pernambuco, cuja capital é Recife – sua cidade natal (e de acordo com ele mesmo, uma das mais belas cidades do país). Atualmente, ele está frequentando o Programa de Doutorado em Educação de Adultos, na Universidade de Auburn, onde também é professor de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Além disso, ele está representando o Governo de Pernambuco na iniciativa de se estabelecer uma parceria entre a UA e a Universidade do Estado de Pernambuco, através do estabelecimento, troca e ampliação de pesquisas que permitirão a alunos e professores das duas instituições explorarem o que cada uma tem para oferecer. É autor de “Um Céu Imenso.”
Hugo Santos is a Professor of Literature in Brazil and received both his undergraduate and master’s degree in Brazilian Literature from the Federal University of Pernambuco, in the state of Pernambuco, located in the Northeast of Brazil, whose capital is Recife—his hometown (according to himself, one of the most beautiful cities in the country). Currently, he is enrolled in the Ph.D. Program in Adult Education at Auburn University and teaches classes in Portuguese and Brazilian Culture. He is linked to the Auburn University Office of the International Programs as a representative of the Government of Pernambuco and is establishing a partnership between Auburn University and the Pernambuco State University, where he worked in Brazil. The research exchange and extension program enables the students and teachers of both institutions to explore what each university has to offer. He is the author of Um Céu Imenso (“An Immense Sky”).
A cadeira se encontrava exatamente no mesmo local. As teias que a recobriam davam-lhe um contorno sutil, de modo que o quadro de abandono do quarto era encoberto por aquele manto prateado, luzindo ao abrir da janela e mantendo intocáveis as lembranças há muito guardadas de uma época de alegria, dor e tristeza.
Remanescendo de uma turva lembrança, que embora agora estranha, era ainda uma visão que me enternecia muito, vi tomarem forma as estantes de livros, a cortina cinza que combinava com aquela extensão de céu sempre chuvoso, e que me trazia, junto com as gotas, o toque mágico do horizonte, quando estendia o rosto pela janela e permitia à chuva desempenhar o papel de confidente e mensageira de uma embalada esperança. Senti a mesma brisa daquelas noites solitárias, daqueles momentos de intangível leveza, em que me sentia num vôo silencioso, rasgando ares sem fim e tendo a minha frente apenas o infinito, irretocável e belo, chamando-me a um mundo desconhecido do meu e a uma vida desconhecida da minha.
Senti o mesmo tremor no assoalho do quarto, de quando ouvia os passos na escada e num rasgo impetuoso de agonia gelava-me o sangue, sufocava-me o peito e eriçava-me o coração, num batimento louco arritmado, vendo surgir, gigantesco e enfurecido, a imagem de meu pai.
– Moleque! Eu disse que não queria você com aquela vadia.
– Ela não é vadia. Só está querendo me ajudar.
– Ajudar a tirar você dessa família, de junto dos seus irmãos.
Meu pai jamais imaginaria o que era estar ao lado da Dona Mariana. Impossível também para um menino de doze anos pensar nela como um ser humano normal. Impossível não ser hipnotizado por uma profunda sensação de êxtase quando a via, em qualquer que fosse o momento, especialmente no primeiro cumprimento do dia.
– Tudo bem, Vitinho? Hoje você parece muito mais encantador e sorridente do que da última vez. Andou ganhando algum presente?
– Não, senhora. Só tô feliz porque tô mesmo.
Hoje eu vejo, sentindo ainda o veludo daquela voz, que aquele jeito cândido, aquela beleza sublime de quem transpirava ternura, era única e simplesmente o que ela era. O seu tom e o seu toque, o rosto delineado lembrando a face do bem, e um sorriso angelical que irradiava pura compaixão, deixaram-me instintivamente apaixonado no primeiro segundo que a vi.
Eu a havia conhecido no mesmo dia em que minha mãe morrera. Ao ver-me chorando no corredor do hospital, sem jamais termos-nos falado antes, ela me deu um abraço afetuoso e alisando minha cabeça e limpando minhas lágrimas, teceu-me os mais belos comentários a respeito de minha mãe que ninguém jamais dissera. Citou frases que ela havia dito, pessoas que havia ajudado e fez-me ver, da maneira mais cristalina possível, que o fazer o bem era o valor mais inalienável que poderíamos ter e repassar.
Minha cabeça girava feito um carrossel. Muito mais pela apaixonante presença daquela diva, do que pelo enredo de dor pelo qual passava naquele dia. Na ocasião não entendi muito bem a iniciativa de Dona Mariana e perguntava-me, a todo momento, o que a movia a tamanho gesto.
Muito mais complicado era tentar entender a reação negativa de meu pai àquela amizade. A fúria que o tomava à simples citação do nome dela deixava-o de tal modo possesso que seus olhos esbugalhavam, a ponto das veias do globo ocular ficarem à vista, a veia da garganta inchar e, a cada berro, chuvas de saliva respingarem em quem o cercasse. Era completamente incompreensível tanta ira por alguém tão infinitamente amável como Dona Mariana.
De toda sorte, e por força de um impulso sempre incontido, jamais deixei de ir aos encontros com aquela minha musa. Apesar do medo das surras prometidas e do calafrio no momento do retorno pra casa, a necessidade de falar-lhe, de ouvir-lhe e de olhar-lhe se sobrepunha a quaisquer sentimentos humanamente conhecidos. O bombeamento do meu sangue aguçava toda a eletrização do meu corpo, e um misto de letargia e ligeireza, de estupidez e genialidade tomavam conta de minhas ações, gestos e sorrisos.
Como era de se esperar, um dia fiz-lhe referência ao ódio nutrido por meu pai, incluindo os detalhes mais constrangedores, à mínima referência a seu nome e, para minha surpresa, absolutamente nada lhe soou estranho. A impressão, inclusive, foi de uma fina dor na confirmação daquelas palavras, no marejamento daqueles olhos e naquele único sorriso, que não foi de um anjo, mas de uma alma ferida por uma estocada, direto no coração, da adaga da amargura.
– E você tem idéia do por quê dessa raiva?
– Não tenho, não. Mas é algo importante, não é?
– Eu já não falo disso há muitos anos. Nesse tempo todo, sempre imaginei que retomar a vida fosse fácil, depois de um duro golpe dado pelo destino. O fato, meu querido, é que os golpes só aumentam de intervalo, mas estão sempre presentes em nossos desígnios, turvando nossa mente e obrigando-nos a trincar nossos risos e enterrar nossos sonhos de felicidade.
Era sem dúvida uma hora difícil para ela, e meio que imaginando algo que pudesse afastá-la de mim a partir daquele momento, senti o meu sangue gelar e a chegada de um medo inapelável incorporou-se às minhas sensações, de modo que fechei os olhos e apenas escutei-a, calmamente.
– Meu amado Vitinho… eu conheci o seu pai muito antes d’ele se casar com a sua mãe. Nós nos amamos muito, mas por uma ironia do destino eu engravidei e tive de sair dessa cidade porque meus pais ficaram inconformados com aquilo. Seu pai nunca me perdoou, embora até hoje não saiba que quando o deixei carregava um filho dele no ventre.
– E onde está ele, agora?
– Infelizmente ele está morto. Ainda bebê, após as complicações do parto, ele não resistiu e os recursos médicos da época não ajudaram. Meu filho morreu aos dois dias de nascido. Se ele estivesse vivo hoje, teria exatamente o dobro da sua idade.
Aquela revelação esclareceu cada ponto nebuloso surgido em minhas indagações internas, e embora ela tivesse divagado por outros assuntos mais amenos, minha mente apenas resgatava aquelas palavras:”(…) os golpes só aumentam de intervalo, mas estão sempre presentes em nossos desígnios(…)”, e por mais que aqueles olhos tristes me chamassem a atenção, eu pensava tão somente na dor daquela mulher, na sua tão contida angústia, embora ninguém pudesse duvidar da alegria que ela sempre nos demonstrava.
Como eu amei aquela mulher! E amei-a muito mais após aquela tarde. Após sentir que apesar de tanta dor, desesperança e eventualmente castigo, seu semblante era do mais sereno amor e enternecimento.
Para minha dor, porém, perdi, naquele instante, minha amada. Ao sair novamente da cidade, dessa vez para não mais voltar, e a exemplo do que ocorrera com meu pai, ela levou consigo, sem perceber, uma parte de mim, a parte que mais me era imprescindível – a alegria de minh’alma.
Tocando agora a janela, onde ao longo dos anos me debrucei, viajo junto daquele meu eu e, planando por um céu imenso, ensaio um contato com Dona Mariana, ícone de meus sonhos e senhora dos meus pensamentos, com quem vivi, cresci e amei, numa vida sem desígnios, sem golpes e sem dores. Numa vida onde ainda era-nos permitido sonhar.